terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O RIO DETRÁS DA CURVA



                                            Atrás daquela curva há um rio
                                            Sei-o, porque o vi.
                                           
                                            Há rios que ficam na retina
                                            para o lado de dentro.
                                           
                                            Eternos, a quem os conhecem
                                            invisíveis, a quem nunca os viram.
                                                                                        
                                            Amores, na vida, há alguns
                                            que a curva do tempo não mostra.
                                           
                                            Eternos, na memória do avesso
                                            dos que os sabem, porque os viveram.

AMOR BANDIDO

Que mata e ressuscita
o que de pior habita
dentro de nós.

Amor de desejos
lampejos ardentes
que trinca os dentes
mas não grita
aos quatro ventos, a dor
de amar sem amor.

Amor sem respeito
que finca os cravos no peito
que fica, fingindo que vai
que não sai da cabeça.
Amor que enlouquece
que jura que muda
mas sempre amanhece
grudado, enroscado
nos restos de nós.

Amor de devaneios
que busca no espelho
o instante partido
Amor de olhares furtivos
por cima dos livros
que não foram escritos
Amor proscrito
repatriado em perdões.

Amor dos senões
amor das desculpas
Amor que se culpa
do tempo perdido.
Amor indeciso
que junta e separa,
Amor das amarras
Amor das chibatas
que fere, machuca.

Amor que não quero
mas não sei arrancar.

O CHÃO

Ah! Tão pé no chão!
Tão pé no chão, que o peso do chão me sobra à cabeça!
Me cobra a represa do vôo travado.
Me pune o pecado da lida rasteira.

Da beira, da beira, da eterna beira,
de quem só entende de chão.

Da asneira de lição aprendida dos precipícios alheios
Tanto receio, tanta xepa de vida!
Tanta regra seguida, a nem um metro do chão.

Quanto chão! Quanto chão!
Quanta vã guarida de chão!
Tanta pedra, tanto tropeço e o chão,
 sempre o chão,
 a me poupar da queda.

Quanta náusea de altura da superfície do chão!

28/01/12

NA MINHA PÁTRIA NÃO JUSTIÇA

Na minha pátria não há JUSTIÇA.
Na minha pátria não HÁ justiça.
Na minha PÁTRIA não há justiça.
Na MINHA pátria não há justiça.

Essa frase não é minha.
É a tradução de um verso da canção  LA CARTA de Violeta Parra.

As alternâncias do enfoque nas palavras dentro do contexto era exercício ensinado nas aulas de interpretação de texto, nos tempos de colégio.

De fora pra dentro, num crescente, assim se mede uma dor, aprendi com o tempo.
A dor, enquanto de Violeta, me causava comoção. Um pouco mais, eu diria, por eu me considerar poeta e os poetas sensibilizam-se até com lua cheia, quanto mais com dor alheia.
À medida que a dor se aproxima do umbigo, vão se agregando outros sintomas, como desespero, náusea, sensação de impotência e abandono.
Poderia citar vários exemplos do que anda acontecendo na minha pátria e que se aproximam perigosamente do meu umbigo, a ponto de me fazerem lembrar da canção.

A gota d’água/veneno de hoje foi uma reportagem vista na TV sobre os brasileiros sem-teto expulsos, na porrada, dos tetos que ergueram em terreno ilegal, no interior de São Paulo.
Na minha pátria fez-se a justiça (da qual dispomos): devolveram, na porrada, o terreno ao seu legítimo dono, o Sr. Naji Nahas (que todo brasileiro tem a obrigação de saber quem é), porque ele tem o registro de posse. E eu tenho vontade de falar muito sobre isso, mas não consigo escrever e cuspir ao mesmo tempo.

Para tentar esquecer tudo isso, volto aos exercícios juvenis de interpretação de texto, desta vez de dentro pra fora, para ver se a dor vai embora:

EU estou com vergonha de ser brasileira.
Eu ESTOU com vergonha de ser brasileira.
Eu estou com VERGONHA de ser brasileira.
Eu estou com vergonha de SER brasileira.
Eu estou com vergonha de ser BRASILEIRA.


28/01/12

ANGÚSTIA

A febre do estrepe
o eco do berro
o prego, o flagelo
o secreto inferno
o inverso.

a seca da pena
a arena, a algema
a rede, a sede
a parede

o beco, o fecho
o medo do erro
o peso do gesso
o azedo do apego
o avesso.

o desassossego.



05/12/11

DA BOLHA AO CALO

Estou cansada de fingir que acredito em quem mente pra mim
De dizer que está bem o que pra mim está ruim
De ser polida com quem diz que me ama, mas nem me sorri,
De ser complacente, de relevar os presentes que não recebi,
De sentir culpa por coisas que disse ou deixei de dizer
De odiar o que faço e sufocar meu prazer           
De suportar os pequenos entraves, cotidianamente,
De permitir que o passado me embace o presente
De olhar no espelho e não ver novidade
De estancar os meus sonhos, engolir as vontades,
De insistir no afeto de quem não merece
De contar os dias que faltam pro que não acontece
De trocar o amor-próprio pela submissão
De esperar por milagres que nunca virão.


       O meu medo maior é que a bolha vire calo
       E o que hoje machuca um dia endureça.

11/01/12

O MEDO

É ele o alerta que protege e encarcera
que me abriga e me enterra
que me esconde do mundo.
.
o medo do passo no meio da rua
do escuro da esquina
do outro lado do muro

o medo do som que teria o grito
do esporro insano
da quebra do mito

o medo da mordida do bicho acuado
Do soluço, da fúria
da raiva engolida

o medo da força do punho fechado
da volta sem volta
pra dentro do umbigo

o medo do salto por cima do trilho
do fim do medo
de tudo

O medo de mim
O medo de mim.


05/12/11

O CAVALO DAS ALMAS

Licinha ajudava como podia. Subia no telhado e, com vara, várias vezes mais longa que suas finas perninhas, socava, socava com força, pra dentro da chaminé.
A mãe talvez nem soubesse, (não, não sabia), o perigo que a filha corria. Em pé, sem apoio, girava no ar os braços, brincando de equilibrista. E ria.
Depois não descia, era por lá que ficava, no seu mundo de silêncio e telhas, e os livros que lia.
Às vezes ouvia o canto feliz da mãe, que cozia. Esquecida das pragas que há pouco rogava:
- Cavalo das almas!
Toda a pobreza, cansaço e fumaça, o fogão resumia.
Velho vermelho fogão, de cimento e lenha, e fogo, e choro. Nuns dias picumã, noutros iguarias. Nunca soube Licinha de onde vinha o nome e o porquê, achava que se tratava de tudo aquilo que entupia.
- Cavalo das almas!
E a vida seguia, como tinha de ser.

Numa noite, talvez véspera de Natal, findo um desses dias de pragas rogadas, ouviu Licinha a mãe que chorava, coberta de raiva, pobreza, cansaço e fumaça, e o pai que dizia: - Calma, velha! Não era pra eu lhe dizer (então, porque é que dizia?) mas amanhã ganharás um novinho, à gás!

Dos dias seguintes não se lembra, mas ainda em si e em meia dúzia de seres, mesmo que a ninguém mais faça sentido, haverá para sempre o amado inimigo:
- Cavalo das almas!
E a vida seguiu, como tinha de ser.


11/12/11

O CAVALO DAS ALMAS - II

Vou contar essa história direito:

Houve um tempo em que fui menina. Sim, porque às vezes penso que nasço a cada manhã, já velha e cansada, sem saber exatamente onde e porque estou. Mas, sempre, ao final de cada um desses dias, sei que fui menina, por mera lógica de quem se percebe humano, apesar de tudo. Sei que tive história, sei da minha raiz enterrada numa cidadezinha do interior do Paraná. Sei que tive pai, mãe, irmãos, primos, vizinhos e essas coisas, cada um com suas histórias. Guardo na memória até histórias que não são minhas, pela convivência e por ouvir dizer. E tive uma casa.
Nessa casa, além de pai, mãe, irmãos, varanda, quintal, havia logicamente um telhado. Porque não, não era uma casa muito engraçada..
Havia um telhado que, para mim, era um cômodo a mais, parte integrante dos meus melhores momentos. Digo, sem a menor dúvida, que vivi mais tempo nas árvores e no telhado, que dentro da minha casa, apesar de manter na retina cada centímetro dela, cada rabisco nas paredes sem pintura, cada nuance da madeira encerada do assoalho, cada homenzinho do fecho das janelas, cada móvel. Ainda sei onde encontrar cada quinquilharia de cada gaveta. Basta fechar os olhos. Mas sempre, sempre, olho o interior da casa, do ponto de vista do telhado. Vejo tudo de cima, como quando era criança. Chego a me ver lá embaixo da mesa, meu lugar predileto, quando a minha mãe lavava o piso e colocava pó-de-serra, para secar mais rápido. E eu ficava desenhando com os dedos e ouvindo, sem entender, os assuntos de dor ou riso, de que falavam os adultos.
Alheamento talvez seja a palavra que melhor me defina, desde sempre.  E era nesse alheamento que eu fixava não as vozes, mas os sentimentos que elas me causavam:
- Olha que tu te ofuscas! – disse-me o meu pai, certa vez em que eu pairava a mão sobre a fumaça da lamparina, porque achava lindo o desenho que se formava na palma . Não entendi que o verbo desconhecido era uma ordem para que eu tirasse a mão. Só na terceira vez, em que a frase aliou-se ao olhar de cenho fechado, foi que comecei a desconfiar que palavras são absolutamente desnecessárias quando se deseja algo de crianças ou filhotes de qualquer espécie. Basta o olhar duro, o dilatar de narinas, a rispidez da voz.
Aprendi desde cedo a me esquivar, para não merecer o castigo das reprimendas. Aprendi a lição errada, mas agora, que importa? Tivesse eu simplesmente perguntado o significado de termos ignorados, tantas imagens como esta não queimariam como fogo até hoje na memória.
Do telhado para onde vou, quando quero me ver, existe um fogão antigo, como tudo naquela casa. Antigo como é hoje o meu espelho, mas lá era meu contemporâneo. Companheiro de cimento vermelho, onde os toquinhos de giz tingiam de branco os toscos desenhos e caligrafias caprichadas. Sentada no chão, como tinha de ser, Sempre no chão, embaixo das coisas, ou no alto. Nunca ao mesmo nível de gente grande. Estranho modo de infância, mas agora, que importa?
Numa coisa minha mãe e eu concordávamos sobre aquele fogão: ele era mais que um objeto inanimado. Para mim era paciente professor e para ela o:
- Cavalo das almas!
Que veio dos infernos para fazer da minha vida outro!
Pobre mãe, já tão enjoada de tantos cozimentos de vida. Tanto se fartaram com sua comida família, empregados, comadres, vizinhas. E ninguém partilhava a fuligem.
E pobre fogão, agora cavalo, que nem sabia onde era o inferno, já que era ela quem lhe ateava o fogo. Engasgava-se o pobrezinho, e se entupia de pressa e medo.
E me doía ouvir o tom, mais que o som, daquela desesperada prece às avessas. 
Então, eu subia no telhado, meu velho conhecido, e erguia não sei como, a vara que lá ficava, de comprimento exato que ia e vinha, e despejava lá embaixo todo o picumã incrustado. E desafogava amigo e mãe, até o próximo engasgo.
Não me lembro de ouvir, ver que fosse, nos olhos, um agradecimento pelo perigo e intenção do gesto. Talvez porque o tempo em que permanecia lá no telhado  fosse o suficiente para o esquecimento, ou talvez até tivesse agradecido e eu não me dei conta. Quantos agradecimentos devo ter recebido na vida, e não me atentei, por não pensar que os merecesse.
Mas me lembro bem que o definitivo herói, o que a presenteou com o novo fogão à gás, foi beijado e abraçado. Tivesse eu descido em seguida, alguma vez, do telhado e partilhado o consolo do paliativo, e tivesse pedido o abraço... mas agora, que importa?
O que restou do cavalo das almas foi a nossa quietude.

11/12/11

É O OUTRO, O TEMPO TODO

            Aquele jovem senhor, de aparência distinta, sentado no meio-fio de uma movimentada avenida, instigou-me a curiosidade, a ponto de ir ter com ele:
- Bom dia, senhor. O senhor está bem?
- Não muito – respondeu-me, cabisbaixo.
- Posso lhe ajudar em alguma coisa? Encaminhá-lo a um pronto-socorro?
- Não, senhora. Meu mal não é físico. Para o meu infortúnio gozo de excelente saúde.
- Precisa de ajuda para atravessar a rua? Logo adiante há uma faixa...
- Não, senhora. – interrompeu-me. - Ir ou ficar, agora já não importa.

Era evidente que aquele homem estava desnorteado. Talvez uma amnésia lhe fizera esquecer o caminho de casa. Talvez um trauma violento o tenha tirado do prumo.
O que mais me chamava atenção nele era a elegância do porte: cabelos longos, levemente ondulados, presos por um elástico, barba bem aparada, roupa surrada, mas via-se de longe tratar-se de tecido caro. Os pés descalços, porém limpos. Não me contive e continuei a conversa, no intuito sincero de ajudá-lo, de alguma maneira:
- O senhor aceita um café? Podemos ir ali à confeitaria. Não estava fazendo nada importante mesmo. Podemos conversar se quiser.
- Sim, podemos. Há tempos não converso com ninguém. Todos sempre apressados, não é? – sorriu-me, tristemente, como agradecido pelo convite.
- Me desculpe a impertinência, mas o seu perfil não condiz muito com o das pessoas que vivem nas ruas – disse-lhe, assim que nos sentamos, junto à porta da confeitaria.
- E qual é o perfil de quem vive nas ruas? – perguntou-me, com ar de reprovação, como se adivinhasse um preconceito na minha observação.
- Oh, desculpe. Não quis emitir juízo de valor. Apenas chamou-me a atenção o seu traje, de quem vem de família abastada e por algum motivo viu-se distante de sua casa.
- Banido, seria a palavra. – a voz embargada, denunciando o presságio de que ouviria uma triste história.
- O senhor desentendeu-se com a sua família?
- Não. Nunca tive família. Vivia sozinho num castelo, apenas na companhia de um amigo. Até que um dia ele virou-se contra mim e me condenou ao exílio-.
- Ah! O senhor vivia num castelo... Repeti em voz alta a frase que me trouxe a suspeita de estar tratando com um doente mental. “Talvez tenha fugido de algum sanatório” pensei..
- Sim, vivia. – continuou, como se não percebesse a minha descrença. - Tinha muito poder, muitos servos, um grande exército que defendia meu reino. Com a traição de meu amigo, os meus próprios soldados se encarregaram de me escoltarem até as fronteiras do meu reino.

Já tinha ouvido falar em muitas estórias fantasiosas e sei que a mania de grandeza é comum em muitos doentes mentais, mas nunca havia conversado com um, assim tão de perto. No entanto, a tristeza daquele homem era tão genuína, que eu já não sabia mais como me livrar dele. Alguma coisa me impelia a continuar ouvindo, ao menos para que ele desabafasse a sua dor. Entrei na sua fantasia e o incentivei a continuar:
- Mas como se deu essa traição? Como ele conseguiu se apoderar de tudo o que era seu?
- Por amor baixamos a guarda. Por amor abrimos portas e muitas delas acabam por nos levar às nossas próprias masmorras. Infelizmente confiei no meu melhor amigo. Ele era o meu guardião, o que transmitia as minhas ordens e as fazia cumprir.Nunca desconfiei da sua inveja. Nunca pensei que o que de fato ele queria era tomar o meu lugar.
- Mas por que o senhor não tentou voltar? Falar com o seu povo? Denunciá-lo? Por que não reuniu um exército e o expulsou de seu reino?
- Tentei isso. Foi a primeira coisa que fiz. Reuni os poucos fiéis soldados e empreendi uma luta sangrenta contra ele. Óbvio que perdi a batalha, não? Nem sempre são os bons que vencem as guerras. E de tudo isso, o que mais me dói é que ele não é um bom rei. É mau. O seu maior prazer é me fazer presenciar todo o mal de que é capaz. E é muito, acredite. A cada lamento de dor que ouço, me dói no fundo do coração.
- O senhor ouve vozes!? – exclamei, tentando imaginar o tamanho da aflição a que aquele homem estava submetido. “Talvez seja esquizofrenia” arrisquei um palpite, leiga que sou em classificação dos distúrbios mentais.
- Sim, o tempo todo. Do mundo todo.  E a cada vez que clamam pelo meu nome, mais ele se deleita. com a minha impotência. É por isso que procuro estar nos lugares mais barulhentos possíveis. Porque não agüento mais ouvir tanto choro e ranger de dentes.

“Choro e ranger de dentes” Já ouvi essa frase em algum lugar – pensei. - Não! Não é possível! Será que este homem pensa ser Deus?

- Mas sempre ouvi dizer que o senhor é mais forte que ele, então, porque não o expulsa, usando somente o seu poder mental? Por que não o desafia para uma luta, só os dois? – instiguei-o, para ver até onde ia aquela mente perturbada.
- Porque as coisas não funcionam assim. Já houve tempo em que eu fazia o que queria, com o poder da minha mente. Mas ele, que aprendeu tudo comigo, também adquiriu este mesmo poder. E mais: ele sabe como se fazer passar por mim, em qualquer situação que lhe convenha. A senhora não imagina quantos generais ele usou, ao longo desses milênios, para levar o flagelo à raça humana, em meu nome.. Quanto mais pessoas imploram por minha ajuda, mais o fortalecem. Já reparou que em cada oração há uma omissão?
- Não entendi. – sua pergunta direta pegou-me de surpresa. Até então, o nosso diálogo se resumia em perguntas que o estimulavam a prosseguir com sua fala. Mas a pergunta foi feita diretamente para mim. – Em cada oração uma omissão? – Devolvi-lhe a pergunta.
- Sim. A cada vez que os inocentes me pedem socorro, atestam a sua fraqueza e, portanto, a minha. Como vou poder lutar contra ele e seus exércitos, se aqueles que me poderiam ajudar, se escondem atrás de mim?.  A cada vez que os humanos permitem que se matem uns aos outros, esperando que eu puna os culpados, fortalecem àquele que os insuflou. A cada criança mutilada, violentada ou morta me coloca numa situação constrangedora perante os humanos, porque não lhes posso fazer entender que não sou eu aquele a quem se dirigem. Que quanto mais exigem de mim, mais me condenam. 
- Mas, o que devemos fazer para lhe ajudar a reaver o seu trono? Como organizar um exército capaz de derrotar alguém tão astuto, a ponto de nos confundir?
- Aprendendo que não se forma esse exército olhando para cima. Entendendo que aquele que está no alto é o outro. O que sempre esteve, o tempo todo.

De repente cessaram as perguntas. Quaisquer que eu pretendesse fazer já saberia a resposta. Os olhos daquele homem, a princípio negros, se alternavam entre castanhos, verdes, azuis. E do brilho que deles emanava, feito nítido espelho, vislumbrei toda a raça humana, à deriva, com seus cânticos, choros e ranger de dentes.

Uma gargalhada sinistra, vinda de algum lugar acima do teto, me fez acordar, de sobressalto.

05/12/11

TROCANDO O 15 PELO 20

Nas costas de um homem doeu chibatada
mais que no outro.
Ao outro e a si prometeu: - Nunca mais.
- Livre nasci, livre serei, até a morte.
Assim, sem exclamação. Só a certeza.

Sua certeza formou o exército
de homens,
guerreiros,
valentes,
livres.

A Liberdade forja o valente
que forja o guerreiro,
que forja o homem,
que forja o exército,
que forja a certeza,
que só livre o homem será.

Seu sangue jorrou por cada poro
e respinga em cada rosto
de negro, de branco,
de mulato, de sem cor.
que sonha
que um dia
no seu dia
Zumbi dos Palmares será
o responsável
pelo feriado
nacional
em memória de quem um dia sonhou
e lutou
e morreu
por uma Nação,
como ele,
Livre.


20/11/11

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A BORBOLETA

As lindas asas azuis de corpo cansado,
finalmente na parede lisa e branca.
Ah! Descanso! Oh! Cansaço!

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto voava? Não se lembra.
Ah! Descanso do voar! Oh! Cansaço do voar!

A amiga cigarra, a cantar, cantar:
- Después de um año bajo la tierra!
Morreu a amiga de tanto cantar.

Ah! Se pudesse, outra vez lagarta!
Comer, comer! Brincar de comer.
Há quanto tempo não come..
Deslizar por entre as folhas e depois comê-las.
E deslizar, e comer, e deslizar, e comer.
Armazenar, armazenar.

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto comia? Não se lembra
Ah! Descanso do comer! Oh! Cansaço do comer!

A amiga cigarra no chão. As formigas a comê-la.
Comer! Comer!
Armazenar. Armazenar.


Ah! Se pudesse, outra vez casulo!
Silêncio, silêncio. Dormir em silêncio.
Dormir em si mesma, sobre si mesma, dentro de si.
Há quanto tempo não dorme.
E dormir, e comer-se, e dormir, e comer-se.
Poupar-se. Poupar-se.

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto dormia? Não se lembra
Ah! Descanso do dormir! Oh! Cansaço do dormir!

A amiga cigarra, que já é formiga.
Fragmentos de cantos comidos.
E tudo é transmutar.


Ah! Se pudesse, outra vez o vôo!
O gozo consciente do voar!
Sem fome, sono, chão, amiga, destino.
Sem visões de formigas de asas azuis.
Nunca mais o encolher-se
Nunca mais o desdobrar-se


Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto tentava? Não se lembra
Ah! Descanso do tentar! Oh! Cansaço do tentar!


02/11/11

ANTIGAMENTE, QUANDO EU ERA JOVEM

Antigamente, quando eu era jovem, achava que podia comer a vida,
 feito sobremesa.
Que ela estaria sobre a mesa, esperando para após o jantar.
Não importava comer o nada, ela estava lá, para dali a pouco.

Quando finalmente cansei de inapetências quis o doce.
E ele era de fruta estragada.

Antigamente, quando eu era jovem, sonhava que o tempo não existia.
Que era brincadeira de mau gosto das velhas bruxas.
Desdenhava das máscaras enrugadas, mostrando-lhes minha força.
 Sem medo do escuro do meu quarto.

Quando finalmente, acesa a luz, porque se fez noite lá fora,
 o escuro veio para dentro.

Antigamente, quando eu era jovem, abdicava dos grandes prazeres,
na espera fantasiosa dos pequenos milagres.
Doava amores e humores a quem comigo dançasse
a dança dos desatentos.

Quando finalmente, pés cansados, ouviu-se a música,
zumbiu no ouvido o som do tempo. Desafinado.


04/09/11

O TRADUZIR-SE

Com que cores pintar essa tela, se há nela todas as cores e, todas elas, intensas e sobrepostas? Que borrão é este, que encobre paisagens e cubos, e esferas?

Como traduzir este ser que há e que nem a mim se revela?

Sem antenas, setas, trilhos, retas. E nada se completa.

Tudo, de início em início, se entrelaça a outros inícios de coisa alguma.

E tudo esfalfa, tudo sangra, tudo arde.
 E tudo foge, tudo escapa, para de novo um novo ser se pintar.
Este ser de movediças areias, de patagônicas geleiras a se derreterem.
Com que cores pintar instantes? Qual a cor da vertigem?

Que ser é este, múltiplo, ávido, desgovernado? Que olha por meus olhos e não me lega lembrança sólida de seqüência nenhuma?

Este ser que não me ensina a diferença entre estar feliz ou infeliz, que não me dá tempo de sentir nada por inteiro. Que tudo já foi e não vi. E nada me deixa.

Que ser é este que em mim rodopia, e se contorce em misteriosas danças? E vai ao alto e despenca vôos alucinados. E sorri, nem sei de quê, e se inebria. E fecha minhas pálpebras e aspira partículas inspiradas de sons dispersos no ar que é só dele. Que vivencia serenidades e no instante seguinte me encharca de angústia.

Que ser é este que em mim habita mas não me pertence?
Com que cores pintar essa tela, se há nela todas as cores, e nenhuma permanece mais que um segundo?


13/10/11

O VOLTAR

Saí da minha casa e fui morar na sua
e ela era tão fresca, e era tão bela!
que pena haver nela tantas portas
e nenhuma, nenhuma janela!

Nenhuma, nenhuma janela
que desse para o que sou
tantas portas, tantas portas abertas
nenhuma em mim se fechou.


Fui lá fora ver se via
o tempo de estar sozinha
do antes de haver outra casa
que me levou o chão da minha.

A velha angústia de sempre
me abraçou, enternecida
que saudade da minha janela
onde lamento, livre, a vida!


11/10/11

QUANDO O AMOR ACABA

Muito se fala de quem perde um grande amor. Ninguém fala de quem deixa de querer, sem deixar de amar.
De como é difícil se privar da companhia de quem se gosta, só porque o amor acaba.
De ter que sufocar um carinho verdadeiro, para não alimentar falsas esperanças e de ter que abaixar os olhos por não suportar a queixa no olhar do outro.
De ter que aprender a desamar para libertar o próprio coração. De esperar que o outro desista.

Muito se fala de ser abandonado, mas ninguém fala na dor de quem primeiro enxerga o fim. E conta cada minuto até que morra de velho este amor. Até que apodreça. Porque quem percebe primeiro sofre, sozinho, a dor de se descobrir desapaixonado.
Ninguém fala de quem nem tem o direito de sentir saudade dos bons momentos, porque o processo de libertação, se não houver fuga, exige maus tratos, intolerâncias, asperezas, silêncios propositais. Desprezo.

Muito se fala de quem sofre o desprezo do ser amado, mas ninguém fala de quem se viu obrigado a desprezar, porque parece condição imposta à toda separação que há de haver sempre um culpado.
Quem é abandonado não tem a responsabilidade com sua dor. Sofre, chora, esperneia, chantageia, tenta o suicídio, amaldiçoa. Depois odeia para esquecer. E nesse instante em que o amor vira ódio, é ele quem abandona quem verdadeiramente o amou.
E quando tudo finalmente acaba, mais sozinho se sente quem, lá atrás, já anteviu.

Muito se fala dos amores nascidos simultaneamente, das paixões à primeira vista. Quem dera haver também o desamor simultâneo. Quantas amizades sinceras seriam preservadas! Que se chegasse ao clímax mútuo da desapaixão. E numa despedida sincera, livres os dois.


Não falo de sentimento de posse, nem de rotinas entediantes, nem de fatores externos. Falo de sintonia. De tempos diferentes.
Falo do amor que acaba porque acaba, sem motivo nenhum, sem patifarias, sem traições.
Falo do sofrimento de quem nem pode se dar ao luxo de chorar sua perda e ainda tem de arcar com uma culpa que não lhe cabe.


04/09/11 

domingo, 15 de maio de 2011

QUANDO SORRIR É PRECISO

Admiro quem não é dissimulado. Quem deixa transparecer suas emoções, sejam elas quais forem.
Não gosto de gente que pensa uma coisa e demonstra outra. Não confio em gente assim. Mas há momentos na vida em que não podemos mesmo demonstrar os nossos sentimentos.  Há situações onde o sofrimento de pessoas inocentes será poupado com um simples sorriso, mesmo que por dentro o coração esteja sangrando.
Como numa sala de espera de um consultório médico uma mãe tenta alegrar suas filhinhas, fazendo gracinhas e, de vez em quando, simula ajeitar os cabelinhos delas, mas que na verdade está checando se a febre está aumentando.
A dor, o cansaço, a decepção por três diagnósticos anteriores errados e a consequente piora do quadro das filhas parecem, por instantes, não transparecer aos olhos de estranhos. Contudo, para quem conhece profundamente seus traços e expressões revela-se o esforço a que ela se submete para transmitir-lhes tranqüilidade.
E quem filma acaba sorrindo, numa cumplicidade silenciosa.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Só pra dizer que te amo

"Oggi è un giorno qualunque
oggi si vive comunque
e non so perchè

Il tempo impone distanze
il tempo è fatto di assenze
e non c'è un perchè"


Há dias assim, como hoje,  em que brigo muito, muito comigo.
Porque faço o que devo e não faço o que quero.
Ouço Dolcenera, por nós.

Só preciso que saiba que não te esqueço.
18/04/11

sábado, 9 de abril de 2011

O SENTIDO DA VIDA

Dormir na inconsciência tranquila
de quem brincou o que podia
no dia que findou

E sentir o afeto verdadeiro
de um amigo
no abraço do sono junto

Eis a vida







A MÚSICA - II

Com a mão esquerda ao volante e a direita a atirar os discos antigos de vinil pela janela do caminhão. Assim ia ele, folgazão, pelas ruas da cidade, até a sua nova morada.
Com os olhos marejados de lágrimas, no assento do carona, a carregar espelhos e demais fragilidades, ia ela, parte integrante da mobília.
O asfalto, enriquecido de música, a soltar faíscas.

Certas pessoas quando querem, e mesmo quando nem percebem, causam mágoas profundas em outras. E ele, nesse dia, serviu-se de Nora Ney para marcar-lhe uma. Indelével.

Perder a casa própria e sujeitar-se novamente aos aluguéis, por amor ao marido, nunca foi coisa rara, infelizmente, para muitas mulheres. E ela, subordinada, por força das circunstâncias, aceitava a sua nova condição sem reclamar. Mas perder sua companheira de noites solitárias, ainda mais de maneira tão jocosa, foi dor indescritível.

E a grande ironia é que de todas as canções daqueles discos, cruelmente destruídos, a mais preciosa, a que dali em diante seria ouvida somente com os ouvidos de lembrar, era justamente a que ela cantava para velar o sono do seu amado:


 “Ó vento, não faz barulho
Porque ele está dormindo
Ó mar, não bata com força
Porque ele está dormindo.

Dorme, menino grande
Que eu estou perto de ti
Sonha o que bem quiseres,
Que eu não sairei daqui...”




Música: MENINO GRANDE
Compositor: ANTONIO MARIA (segundo o youtube)
Gravação: NORA NEY



sábado, 2 de abril de 2011

VERSO E REVERSO

              


Ela, de Aquário. A mente, à frente, sempre um passo.
Ele, de Sagitário. Metade homem, metade cavalo.


INÍCIO

Aos dois, a música:
Nele, dançada. Nela, ouvida.

Aos dois, a palavra:
Nele, falada. Nela, lida.

Aos dois, a risada:
Nele, farta. Nela, contida.



MEIO


Aos dois, os dias:
Nele, promessa. Nela, espera.

Aos dois, as noites:
Nele, festança. Nela, quimera.

Aos dois, o prazer:
Nele, busca. Nela, cautela.



FIM

Aos dois, o tempo:
Nele, cansaço. Nela, sublimação.

Aos dois, a saudade:
Nele, remorso. Nela, superação.

Aos dois, a morte:
Nele, partida. Nela, perdão.





Para a Dê e o seu Zezinho




A MÚSICA - I


                          


Numa noite, há muitos anos, na história de uma linda mocinha, houve um adeus com gosto de lágrimas, ao som de uma linda valsa. Não se conheceu o motivo do rompimento, mas soube-se da imensa dor por ele causada. E a mocinha viu partir o seu grande amor, e à medida que se afastava, ia-lhe arrancando, pedaço a pedaço, o coração. E os acordes da triste valsa a fazerem ainda mais lindos os olhos verdes do amado, que daquela noite em diante seriam de outra qualquer. E o valsear dos casais perderia o mais belo dos seus pares. Tudo acabado. O destino desfolhava toda a felicidade que seu amor traduzira. E o primeiro grande amor conhecia a dor. Desfeito o ninho, tudo se faria saudade.

Mas, assim como nas lindas valsas que falam de amor e dor, falou-se também do tempo, que trouxe de volta o amado e muitas outras dores, mas desta, sendo a primeira, para sempre no peito encravada.

E deste amor imensurável, até que a morte lhe tirasse o verde dos olhos do amado, nasceram frutos e, destes um, que pela mesma música se encantou. Regravou-se em outra época a canção que faria marcar, já então, duas adolescências.

E o tempo tornou a passar para que a morte levasse, desta vez a mocinha de olhos chorosos, de lábios já murchos de tantas renúncias. E viu-se o pranto correr, na saudade que ficou. E sua história foi-se consigo, ao encontro talvez do amado.

E o tempo, abre-alas da morte, levou também a adolescência do fruto para bem longe, deixando em tudo o perfume, na quietude dos amores contados e recontados.

Um dia, os frutos do fruto ouvirão a mesma valsa, ou outra, que os farão recordar-se de outros amores, em outros tempos, vividos.

Por onde o tempo passa e tudo o que a morte leva, ainda que haja dor, não se sabe que força é essa, que só a música permanece, para contar as histórias de amor.







Homenagem à Lola e Jayme






A música: E O DESTINO DESFOLHOU

1ª gravação – Carlos Galhardo – anos 30/40
2ª gravação – Paulo Sérgio – anos 70






O nosso amor traduzia felicidade e afeição
suprema glória que um dia tive ao alcance da mão
mas veio um dia o ciúme e o nosso amor se acabou
deixando em tudo o perfume da saudade que ficou.

Eu te vi a chorar, vi teu pranto em segredo correr
e parti, a cantar, sem pensar que doía esquecer.
 Mas depois veio a dor. Sofro tanto e essa valsa não diz,
 Meu amor, de nós dois, eu não sei qual é o mais infeliz.

Os nossos olhos choraram, o nosso idílio morreu.
Os nossos lábios murcharam porque a renúncia doeu.
Desfeito o ninho, a saudade humilde e quieta ficou
mostrando a felicidade que o destino desfolhou.

Composição de: Mario Rossi e Gastão Lamounier


27.03.11




OS GENÉRICOS DO AMOR




O amor, quando verdadeiro, não se interrompe. Não existe ser humano capaz de desligar esse interruptor. Não sem muito sofrimento. O que nos ilude, muitas vezes, é que nos vendem coisas parecidas com o amor. Há empatia, simpatia, admiração, carência afetiva, auto-afirmação. Há até a falta do que fazer. Mas, dentre todos os perigos aos quais está exposto o nosso coração, o mais devastador é quando nos fazem tomar do amor genérico.

O genérico do amor está por aí, em cada esquina, em cada virar de olhos, em cada poesia lançada aos quatro ventos. A bula é igual, a dose é a mesma, a embalagem criativa, o sabor às vezes até mais açucarado. Ao contrário do verdadeiro, que nos deixa na boca o mel e o fel, que altera o nosso cheiro, se embrenha pelos poros e chega ao nosso DNA, para dali em diante nunca mais sermos o que fomos antes dele. Estejamos onde estivermos e com quem estivermos ele estará lá, porque não há modo de desligarmos nossas artérias e permanecermos vivos.

O genérico do amor é danoso porque tem o brilho da coisa nova. Tem a leveza do encanto. (Do canto das sereias). A diferença é que ele evapora mais rapidamente e, ao evaporar, destrói o nosso sistema imunológico. Deixa-nos graves efeitos colaterais, como, por exemplo, a saudade da coisa vazia. E não existe pior seqüela que a saudade do que poderia. Bem diferente da saudade do amor curtido, que mesmo lavando os olhos, nos faz companhia.

Mas, cuidado, que até a saudade tem seus genéricos. Um deles até conheço: o amor-próprio ferido, que em tudo a ela se assemelha, no escuro. Até que nova luz se acenda.

Não que todo genérico seja ruim, pois na falta do nada o pouco sempre ajuda. Mas, se pretendemos evitar falsificações, nada melhor que a vacina de uma boa dose de auto-estima.











Dedicado a todos que tiveram seus interruptores danificados devido ao mau contato de fios baratos.








sexta-feira, 18 de março de 2011

OS REFUGIADOS DE JIRAU

A selvageria cometida por alguns empregados (ou não) da usina Jirau aqui em Rondônia provocou uma cena de horror jamais vista ou imaginada neste estado. Cerca de 20 mil homens e mulheres, em estado de pânico, no meio de uma verdadeira praça de guerra.  Mais de 50 ônibus, automóveis, caminhões e vários dos alojamentos totalmente destruídos pelo fogo, hoje são um amontoado de ferro retorcido e ainda fumegante, marcando para sempre na memória não só dos que lá estavam, mas de todos nós que acompanhamos pelas fotos e na televisão. 

Coisa triste de se ver a expressão do rosto dos mais de 4 mil homens desalojados, dormindo nos ginásios de esporte e até na rua, com suas trouxas de roupa e nenhum dinheiro, à mercê da caridade dos pães distribuídos, como se fossem refugiados de guerra. Brasileiros de vários estados que para cá vieram, em busca do sonho dourado que oferecem as construções de mega usinas como esta de Jirau, hoje na desolação total.

Usina parada. Policiamento ostensivo. Filas imensas na rodoviária para a volta  não se sabe pra onde. O sentimento unânime de sonho acabado em todos os pacatos trabalhadores que sofreram as consequências desta bestialidade.

Hoje, 18 de março de 2011, Porto Velho viu fecharem-se as portas das lojas em plena luz do dia, por medo de saques dessa gente que perdeu tudo. Até a esperança de serem cidadãos. Sem assistência, sem dignidade, sem passado, sem futuro.


18.03.11

AS COINCIDÊNCIAS DA VIDA

Eram duas horas da tarde e a tão aguardada entrevista com o editor chefe finalmente aconteceu. Do jeitinho que a sua esperança lhe prometera. Desde que chegara do sul, há poucas semanas, entregara alguns currículos, inclusive neste jornal, mas apesar da esperança de conseguir uma vaga, ainda sentia certo receio. Na semana anterior, o editor somente agendou uma nova visita, pois não poderia lhe atender.  Hoje não. Hoje ele até lhe surpreendeu, recebendo-a com um abraço caloroso. Elogiou seu currículo e lhe ofereceu a vaga. Era a sua grande oportunidade profissional e estava realmente feliz. Feliz não só pelo emprego, mas principalmente pelo carinho recebido num momento em que estava tão carente.
Saiu do jornal quase tropeçando nas próprias pernas, sentindo que sua vida mudaria para melhor. O único sentimento que ainda lhe apertava o coração era a saudade dos familiares que ficaram no sul, mas a vida de uma mulher casada impõe certos sacrifícios. Quando abdicara do seu trabalho e do convívio com os pais, irmãos e amigos para seguir com seu marido e filhinho para outro estado, já sabia que teria de abrir mão do seu passado para construir seu futuro com sua nova família.
Não via a hora de chegar a casa e ligar para a mãe e lhe dar as boas novas. Quem sabe a sua alegria fizesse bem a ela, já que a deixou tão deprimida com a sua partida. Estava ansiosa de poder dizer-lhe que agora já poderia trazê-la para viverem juntas e assim poder lhe compensar por todo o sacrifício empreendido na sua formação.
Não precisou ligar. O destino se encarregou de lhe oferecer a voz entristecida do pai, no toque repentino do telefone. Do outro lado da linha, a notícia que a sua querida mãezinha falecera, há poucos minutos. Às duas horas da tarde, no exato momento em que recebia, sem saber, o primeiro abraço de pêsames do seu futuro chefe. 





Dedicado à Keyla, minha colega de trabalho, cuja história me foi contada, entre lágrimas, mas conservando nos alvos dentes o sorriso mais lindo que já vi.


18.03.11

domingo, 13 de março de 2011

FELIZ DESANIVERSÁRIO



Era como o Chapeleiro Maluco comemorava todos os dias que não eram o dia do aniversário. E é neste domingo, 13 de março, que eu descelebro aqui de longe dois desaniversários. O primeiro, da Lavinia, que estaria assoprando suas sete inocentes velinhas, não fosse uma coisa inominável achar graça em metê-la pra debaixo da terra. O outro, da própria coisa, para quem em nenhum dia será aniversário, porque o tempo da coisa não é humano. Não conta os anos, não conta a vida.

Neste dia eu queria até crer, só pra que Lavinia estivesse comendo o bolo de massa mais leve e de gosto mais saboroso, seja lá onde for. Neste dia eu queria até crer que a coisa comesse (porque coisa come) o bolo de massa também leve e de gosto também saboroso, com uma pitada, não muita, mas o suficiente, do veneno mais poderoso.

Lavinia, cujo nome significa “a que purifica” veio ao mundo para livrar outros três anjos inocentes da coisa, a quem chamavam de mãe. Sejamos todos purificados. O sacrifício foi feito, para a glória do Senhor.


Alice Gomes
            

sexta-feira, 11 de março de 2011

DOBREM OS SINOS POR LAVINIA

Ando cansada de tanta benevolência. Ando mesmo cansada. – “Só Deus pode tirar a vida de um ser humano” – é o que mais ouço quando se fala em pena de morte para crimes hediondos. – “Se condeno à morte um assassino estarei agindo da mesma forma que ele” – outra frase premiadíssima nos festivais de asneiras. É impressionante a capacidade humana de perdão, em se tratando de tragédias alheias, que só lhe dizem respeito o tempo necessário até uma nova manchete na televisão.
Há alguns dias um monstro brasileiro enrolou um cadarço de tênis no pescoço de uma criança brasileira de seis anos de idade e a enforcou, para se vingar do amante. Enforcou uma criança de seis anos! Enforcou uma criança de seis anos! Enforcou uma criança de seis anos! Não, não é erro de digitação. É horror mesmo. Eu ouço o grito dessa criança, implorando ajuda, e não posso acudi-la. Eu vejo as suas perninhas e bracinhos se debatendo em vão enquanto agoniza, e não posso acudi-la. Eu sinto a sua lingüinha sendo espirrada para fora e não posso acudi-la. – Ah! Senhoras e senhores, não me venham falar de perdão em hora de náuseas!

Eu me nego terminantemente a compactuar com esta entorpecida permissividade reinante na chamada sociedade cristã (des)organizada, que fecha os olhos às barbáries, em nome de uma pretensa predestinação divina. - Nem na plateia me caibo. - Não sou conivente. Jamais serei conivente com um povo que prefere manter no seu seio um monstro, a permitir que futuros inocentes sejam protegidos, através da coibição severa desses atos inomináveis. Não sou cúmplice de assassinos de crianças. Meu Deus não é esse. Meu Deus não escreve tão torto dessa maneira. Se o Homem foi criado à imagem de Deus, como pregam os entendidos em leis celestiais, reivindico o meu pedacinho Dele para gritar por todos os inocentes que estão hoje com as bocas cheias de vermes, embaixo da terra. Por todas as crianças que deveriam estar brincando neste momento, ao invés de estarem à mercê de cadarços demoníacos nos pescoços.

Pelo menos as crianças! Que adultos são estes, com sangue de barata, que não conseguem fazer leis que protejam, pelo menos, as crianças de seis anos de idade?   – “Ah, mas a doida-lá foi presa” – Tá. Mas a doida-lá está viva, comendo, dormindo, brevemente namorando. E daqui a bem pouco tempo, livre, graças ao bom comportamento. Talvez nem fique presa, se for constatada insanidade mental. Me poupem. Até aos doidos de pedra se pode ensinar que não se rasga dinheiro e não se come bosta. Nada custa acrescentar que não se mata criança, caso contrário se morre também.  Doida sou eu que não consigo entender como um ato desses, cometido por um humano, deva ser julgado por Deus, já que seguramente não foi a Seu mando... (E deixo aqui as reticências propositalmente).

Orem, senhoras e senhores, pela alma do anjinho que foi para perto do Senhor, enquanto eu aqui fico orando pela criação imediata da Lei Lavínia. A Lei que matará sumariamente quem se atrever a assassinar crianças neste país.

Enquanto isso, a nova manchete já é de um outro doido que resolveu degolar a moça,  porque a amava e não era correspondido. Não sem antes quebrar-lhe os ossos e os dentes.

 Alice Gomes
   11.03.11


Referente ao bárbaro assassinato por enforcamento da garotinha Lavínia Azeredo em 02.03.11  que completaria neste domingo (13.03.11) seu aniversário de 7 anos.

Baseado nos textos abaixo, de autoria de Luiz Vieira Costa Neto, o Yamânu, publicado no Recanto das Letras em 05.03.11, e que gentilmente me cedeu autorização para a divulgação






MONSTRO E GENTE
O MONSTRO
FAZ-SE DE INSANO
MENTE SER DOENTE
MATA IMPIEDOSAMENTE

GENTE
INSANA GENTE
QUE A SI MENTE

CHORA A MORTE DA CRIANÇA
É CONTRA A MORTE DO MONSTRO
E CHAMA AO MONSTRO DE GENTE



(LUIZ VIEIRA COSTA FILHO)
05.03.11

  

  


MORRA MONSTRO
CRIANÇAS MORREM A TODO INSTANTE. ACIDENTES, GUERRAS DOENÇAS, FOME, ASSASSINADAS.

AS VEZES ACONTECE ALGUMA COISA DENTRO DA GENTE  QUE NÃO SABEMOS EXPLICAR. ALGUM ACONTECIMENTO É MUITO PESADO PARA NOSSOS OMBROS. MESMO SENDO ALGO QUE VEJAMOS ACONTECER TODOS OS DIAS.

O ASSASSINATO DESSA MENINA LAVÍNIA ESTÁ PESANDO NOS MEUS OMBROS, COMO SE ESSA MENINA DE SEIS ANOS DE IDADE TIVESSE O PESO DE TODAS AS CRIANÇAS QUE MORREM DIARIAMENTE EM TODO O MUNDO. ME SINTO CULPADO.

SINTO COMO SE EU ESTIVESSE AO LADO DELA DÊS DE O MINUTO EM QUE O MONSTRO A RETIROU DA SEGURANÇA DE SEU QUARTO. ESTOU AO LADO DELA NA RUA A CAMINHO DA CAVERNA DO MONSTRO. EU ESTOU COM ELA NA CAVERNA DO MONSTRO.

ENTREI COM ELA NAQUELE ÔNIBUS A CAMINHO DO SEU DESTINO FATAL. ENTREI NAQUELE QUARTO. VI O PAVOR ESTAMPADO EM SEU ROSTINHO DE MENINA DE SEIS ANOS DE IDADE. OUVI SEU CHORO. SUAS SÚPLICAS. E NADA FIZ.

PORQUE SINTO ESSAS COISAS NÃO SEI.  APENAS SINTO CERTA CULPA PELA MORTE DESSA MENINA. ME PERGUNTO PORQUE EU NÃO ESTAVA LÁ PARA IMPEDIR. PORQUE EU NÃO MATEI O MONSTRO ANTES QUE ELE MATASSE CRUELMENTE AQUELA MENINA DE SEIS ANOS DE IDADE.

COMO É POSSÍVEL QUE ALGO ASSIM ACONTEÇA? UMA MENININHA OLHANDO PARA A MORTE. SENTINDO A DOR DO GARROTE EM SEU PESCOÇO DE CRIANÇA. SENTINDO A DOR DA MORTE. COMO É POSSÍVEL QUE ALGO ASSIM ACONTEÇA?

PORQUE O MONSTRO NÃO MORREU UM SEGUNDO ANTES DE TENTAR MATAR A CRIANÇA? PORQUE EU NÃO ESTAVA LÁ PARA MATAR AQUELE MONSTRO? MORRA MONSTRO. TIRE ESSE PESO DE MEUS OMBROS MONSTRO.  MORRA MONSTRO.



(LUIZ VIEIRA COSTA FILHO)
05.03.11

sábado, 5 de março de 2011

O ACONCHEGO DO VOLTAR



Andei tão afastada de mim
que por pouco não me perco.

Tão outros fui por um tempo
que quase me esqueço.

Mas voltei.

 E como é bom quando me volto
 para quem me espera!

e me revejo

E reaprendo coisas
que desaprendo, às vezes.